Vinícius Oliveira Rocha é escritor, jornalista, crítico e revisor. Nasceu em São Paulo, mas é um nordestino de coração que cresceu na Bahia e em Sergipe. É autor do livro O Destruidor de Mundos, primeiro volume da saga O Kar-Tet e dos contos A Outra Ana e Motorista Noturno da Rua da Frente. Apaixonado por cinema, séries, música e (óbvio) literatura, busca viver da escrita e tem muito a dizer ao mundo através das suas obras.
Em uma entrevista concedida ao colunista do Movimento Poético Geração de 20 e jovem escritor Enzo Santana Macedo, o professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) discute os desafios de conciliar as linguagens jornalística e literária, bem como a desmotivação em publicar suas obras por meio de uma editora.
Qual é o papel da literatura na sua vida e a que ponto isso te inspira a escrever?
A literatura sempre esteve muito presente na minha vida desde pequeno. Aprendi a ler com os gibis da Turma da Mônica e em minha casa devorava tudo: revistas, livros didáticos da minha mãe, enciclopédias, clássicos da literatura brasileira, etc., minha relação com a literatura e leitura é tão antiga que cheguei a pular a alfabetização por já saber ler e escrever. Sempre digo que é impossível ser um bom escritor sem antes de tudo ser um bom leitor. Por isso não nego as inspirações que cercam minhas histórias, já que meu desejo por começar a escrever veio justamente do fato de que eu queria trazer à vida obras tais quais elas que tanto me inspiravam e me formaram enquanto leitor.
Além de escritor, sabe-se que você também é mestre em jornalismo e professor nessa área. Como é equilibrar esses dois trabalhos?
Lembro-me de que quando entrei em jornalismo uma amiga minha que fazia o curso me avisou: “se prepare porque você vai ler muito, muito mais do que imagina”. E ela estava certa, só que tem um "porém": a linguagem jornalística é muito diferente da literária e também da acadêmica, já que preza pela objetividade e acessibilidade das informações ao público. Então às vezes me pego conciliando não só dois, mas três tipos de linguagens que têm suas particularidades, mas com o tempo fui encontrando esse equilíbrio delicado entre elas.
Outra questão que pesa é que, infelizmente, ainda não tenho condições de viver da escrita literária. Felizmente, sou bastante realizado com o jornalismo e com a caminhada acadêmica que venho cursando e que culmina agora nesse meu trabalho como professor do curso na mesma universidade em que me formei e fiz o mestrado, a UFS. E nos últimos tempos, tem sido justamente o trabalho com o jornalismo (seja como professor ou profissional em outras áreas da profissão) que possibilita custear a publicação das minhas obras.
Mas é claro que muitas vezes é preciso estabelecer prioridades. Durante a graduação, eu me envolvi com a publicação do meu primeiro livro, mas o mais importante naquele momento era me formar como jornalista. Da mesma forma, agora tenho vários planos em relação às minhas futuras obras, mas tenho outras prioridades, como o doutorado, e são nelas que preciso empregar meu tempo, esforço e dinheiro.
Você crê na existência de uma relação entre a escrita criativa e o trabalho jornalístico?
Não só creio como tento praticar dentro do possível. Uma das primeiras reportagens que escrevi durante o curso falava dos impactos do Novo Ensino Médio na educação brasileira, e eu fui entrevistar alguns gestores e professores numa escola de uma zona periférica de Aracaju. Para começar essa reportagem, eu fazia uma descrição da entrada do colégio, que gerava uma ambientação de tal forma que o leitor pudesse ver a escola em sua mente de maneira bem vívida.
Claro que o jornalismo tem suas normas e “regras” em relação ao formato e estrutura do texto, mas adoro quebrá-las quando possível e inserir algumas das minhas influências literárias. Existe mesmo até o campo do jornalismo literário, que une elementos dessas duas áreas para produzir textos jornalísticos que fogem daquele modelo engessado de notícia, que se atenta apenas ao fato e não dá a oportunidade de trazer um aprofundamento e um teor mais reflexivo. Então, dentro do jornalismo literário, você vai ter essas características (a descrição detalhada de ambientes, a ênfase nos personagens, o caráter mais imersivo) que distanciam esse texto da proposta factual do jornalismo hegemônico e se aproximam mais das características da literatura.
Sua última história, Motorista Noturno da Rua da Frente, traz uma clara referência a traços culturais sergipanos. Como isso se relaciona ao seu tempo morando em Aracaju?
Aracaju foi, é e será sempre uma parte importantíssima da minha vida. Entre idas e vindas, já são 10 anos morando na cidade, e lembro-me de que na primeira vez em que me mudei (aos 13 anos), gostava de pegar vários ônibus coletivos e rodar a cidade, indo da zona sul à zona norte e até aos municípios vizinhos da Região Metropolitana. Então a ideia para escrever Motorista Noturno surgiu gradualmente ao longo dos anos, a partir de diversos elementos que eu notava ao meu redor conforme perambulava pela cidade — a estátua do caranguejo na orla, os arcos, o Largo da Gente Sergipana (onde há estátuas de diversas figuras e manifestações folclóricas de Sergipe). Eu me desafiei a escrever uma história de fantasia legitimamente brasileira e situar minha primeira obra do tipo em Aracaju me pareceu mais do que apropriado.
Em relação à pergunta anterior, você trouxe como parte da história um confronto entre o povo indígena Xocó e outros, chamados de Lambe-Sujos, que têm descendência africana. Há aí uma mensagem para as questões raciais dos dias de hoje?
Com toda a certeza. A escolha por fazer essa releitura da festa dos Lambe-Sujos e Caboclinhos veio de uma série de razões. A primeira foi que inicialmente o título do conto era Motorista Noturno da Rua Laranjeiras, que é uma importante rua de Aracaju e que recebe esse nome devido à cidade de Laranjeiras, que é onde a festa acontece. Um tempo depois me inscrevi num concurso literário para uma revista que tem como uma de suas maiores marcas a ênfase na decolonialidade, e como o cerne dessa festa é esse conflito encenado entre um grupo de origem africana e outro de origem indígena, fiquei pensando: “Tá, mas porque eles brigam? Por que estão uns contra os outros?”.
Foi aí que decidi elaborar essa narrativa de que o conflito existe porque o colonizador branco gerou essa antagonização. Tanto é que a virada de chave do conto ocorre quando o protagonista — um homem negro — se questiona sobre se aquele Xocó/Caboclinho é de fato o verdadeiro inimigo ali. Obviamente que não se trata de uma forma de desvalidar a festa dos Lambe-Sujos e Caboclinhos — tem uma história de muita luta e resistência por trás dela e isso merece todo o reconhecimento possível —, mas é uma maneira de pensar criticamente os processos colonizatórios de Sergipe e do Brasil. Tudo isso embalado num bom pacote de uma história de ação.
Você já disse, outras vezes, apreciar histórias de ação. Como foi criar algo do gênero em Aracaju, a cidade conhecida por “dormir cedo”?
Desde pequeno fui aficionado pelo cinema de ação, sejam obras envolvendo artes marciais, criminosos, policiais e outros elementos do gênero. Em especial, tenho um fascínio por protagonistas como os de filmes tais quais Le Samourai (1967), Fogo Contra Fogo (1995), Drive (2011) e Baby Driver (2017): caras misteriosos e enigmáticos, mortalmente eficazes em seus trabalhos e que nunca falam muito. Então eu sabia que queria um protagonista para minha história que seguisse essa linha, mas de uma maneira inconsciente acabei me inspirando também em Max, o protagonista vivido por Jamie Foxx em Colateral (2004): um taxista super simpático e comum que tem a noite mais louca e perigosa da sua vida.
Uma coisa que há em comum nesses filmes é que suas tramas se passam durante a noite em boa parte deles (às vezes só durante a noite, como Colateral). E isso gera a ideia de que a noite é o momento em que aquilo que está oculto durante o dia pode se revelar sem medo de julgamentos, por mais ilícito que pareça. Então parecia a ideia perfeita para uma obra que se passa em Aracaju, que é essa capital com cara de interior e onde as atividades se encerram cedo. Dá mais liberdade aos clientes do protagonista para transitarem pela cidade sem o risco de serem rejeitados e rechaçados, já que definitivamente não são figuras nada comuns.
Todas as suas obras foram publicadas em edições independentes. Por quê?
Na verdade, meu primeiro livro foi publicado por uma editora, mas não foi uma boa experiência para mim, principalmente no que se refere à divulgação. Basicamente, paguei caro para eles publicarem meu livro, mas toda a parte de divulgá-lo não aconteceria se eu não corresse atrás, já que eles sequer fizeram isso. Esse processo me desanimou bastante de publicar outras obras naquele período, especialmente levando em conta que era um contrato de 5 anos com essa editora. Quando o contrato se encerrou, decidi que focaria no relançamento do meu livro, mas para isso precisaria construir o meu público e me fazer mais conhecido. Foi daí que surgiu o estímulo de escrever Motorista Noturno da Rua da Frente e A Outra Ana, e até mesmo a ideia de lançá-los na Amazon, para Kindle e Kindle Unlimited, veio para “testar” a viabilidade de divulgação e rendimento nessas plataformas, já que agora eu assumiria os custos, além da divulgação.
Como autor independente, qual você pensa ser o futuro dessa forma de publicação?
Eu acho que é uma tendência cada vez mais viável, especialmente porque estamos num cenário onde os livros publicados por editoras são cada vez mais caros e as plataformas digitais apresentam formas de você se lançar e se divulgar. Mas esse processo requer planejamento e investimento financeiro, não se trata apenas de lançar seu livro numa plataforma. Para os meus contos, contei com profissionais de revisão e leitura crítica, leitura sensível, capa/ilustração e diagramação. Custou bem menos do que quando publiquei meu livro por uma editora, mas ainda houve um gasto significativo envolvido.
Ainda tem a questão de que, nesse mundo de redes sociais e bookstans/booktokers/booktubers, etc., não basta só escrever e lançar seu livro, mas produzir um conteúdo sobre ele que o torne atrativo ao público. Tenho inúmeros problemas quanto a isso, já que muitas vezes esses conteúdos se limitam a apresentar os clichês (ou “tropes”) do seu livro, rotulando-o. Como eu rotulo uma obra como Motorista Noturno, que mescla influência do cinema de ação e neo-noir com o folclore sergipano? Posso até o categorizar como “fantasia urbana”, mas ainda me parece reducionista. E nem todo mundo está disposto ou tem energia para se lançar como produtor de conteúdo nesses ambientes. Acaba gerando um desânimo, uma sensação de comparação com quem consegue "hitar" nessas redes, e tudo isso é muito injusto, sobrecarrega muito a nós, escritores independentes.
Existe algum livro ou autor que seja referência na sua escrita ou na sua vida?
Como sou leitor assíduo de fantasia, tenho muitos nomes que me marcam bastante:George R.R. Martin, Patrick Rothfuss, Tolkien, Susanna Clarke, Anthony Ryan e outros. No passado, também admirava muito aquela-que-não-pode-ser-nomeada e que escreveu aquela saga do bruxinho lá (a qual foi uma inspiração muito forte para o meu primeiro livro)... mas hoje em dia só consigo sentir asco da pessoa que ela é. Ultimamente, tenho me viciado no Brandon Sanderson, infelizmente caí no esquema de pirâmide literária dele e quero devorar toda a bibliografia do cara. Outra autora em quem estou fascinado recentemente é a R.F. Kuang, na maneira fenomenal como ela entrelaça fantasia e anti-colonialismo.
Depois que passei a adentrar mais o mercado literário brasileiro, me aproximei de diversos autores e autoras nacionais que, na minha opinião, não devem nada à literatura gringa, em especial na fantasia. Tem o M.P. Neves, Roberto Campos Pellanda, Rute Ferreira, Paola Siviero, Fernanda Castro, Arthur Malvavisco e muitos outros, além de maravilhosas autoras sergipanas que também são amigas minhas, como Thiarlley Valadares, Mari Lima (que foi responsável pela diagramação dos meus contos), Letícia Monalisa e Maria Fernanda Rosenstock.
Há algo a se saber sobre seu próximo livro?
Na verdade, meu próximo livro é o meu primeiro. Pretendo relançá-lo, agora como autor independente, numa versão revisada e mais próxima da visão que eu tinha para ele, especialmente quanto à identidade visual. A meta era relançá-lo ainda este ano, mas infelizmente não posso dar essa certeza. Já tenho uma sequência dele finalizada e no momento estou escrevendo a segunda sequência, mas o foco é nesse relançamento. Há muitas outras ideias de livros que eu quero escrever, sejam contos, romances de volume único ou até mesmo duologias, trilogias e sagas. Mas tudo a seu tempo. Uma coisa é certa: a julgar pela recepção e comentários de alguns leitores de “Motorista Noturno da Rua da Frente”, pode apostar que num futuro próximo estarei expandindo o universo desse conto com outras obras, sejam sequências ou spin-offs.
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Sobre o entrevistador: Enzo Santana Macedo nasceu em Teresina–PI e passou sua infância entre Bahia e Maranhão. Seus contos foram publicados em revistas digitais renomadas, incluindo Aboio e Ruído Manifesto. Para saber mais sobre suas reflexões literárias e opiniões, ele pode ser encontrado no Instagram: @enzo_santana_macedo.
Edição: Dee Mercês.
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