Milena Caravalho é formada em Cinema pela Escuela Profesional de Cine y Artes Audiovisuales de Eliseo Subiela, em Buenos Aires, Argentina, e em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Estadual do Maranhão, ela também é escritora e pós-graduada em Psicologia Analítica com ênfase em Contos, Sonhos, Mitologia e Artes Dramáticas pelo Instituto Freedom, em São Paulo. É fundadora da empresa sociocultural Yabá Filmes.
Em uma entrevista concedida ao colunista do Movimento Poético Geração de 20 e jovem escritor Enzo Santana Macedo, a cineasta e escritora maranhense Milena Carvalho falou sobre seu livro de estreia, Quem é essa mulher?, que aborda temas como abuso sexual e a jornada de reconstrução da identidade feminina. A obra, que se destaca no gênero autoficção, nasceu de um exercício de escrita durante um curso de cinema, transformando-se em um processo terapêutico para a autora. Milena também compartilhou suas experiências em projetos de ensino de escrita para mulheres, destacando o poder da escrita como ferramenta de superação e empoderamento. Confira.
Dentre tantos gêneros literários, você se destacou na autoficção. Por quê?
Nunca imaginei que escreveria este livro ou qualquer outro. Fiz faculdade de Arquitetura, com a intenção de trabalhar como cenógrafa, e de Cinema, com a certeza de que teria mais liberdade na idealização e construção de universos diferentes do meu. Fui de São Luís para Buenos Aires e de lá para o Rio, onde trabalhei no Complexo do Alemão dando aulas de cinema. Nas oficinas, vi pessoas que conseguiram encarar suas experiências ruins e tristes, mudando toda a perspectiva para algo novo a partir de ferramentas tão potentes como o cinema e a literatura, construindo personagens nem tão inventados assim. Então, um dia, decidi fazer um dos exercícios que eu passava para eles.
Assim criei o personagem Marcinho, para quem escrevi uma grande carta de desabafo, suposições e um pouco de fantasia. Nesse meio tempo, participava de um curso literário e os professores, também donos de uma editora, leram a carta e perguntaram se eu tinha intenção de publicá-la. Decidi visitar São Luís, viver algumas coisas que achava necessárias para transformar a carta em livro. Uma desculpa que dei a mim mesma para reencontrar meu passado e tentar fazer as pazes com ele.
Além de ser escritora, você ministrou vários projetos para ensinar escrita aos mais diversos grupos de mulheres, com foco na autoficção. Como o ato de escrever sobre si pode ter ajudado suas alunas?
Na faculdade de cinema, tive a oportunidade de entrar em contato com o trauma de uma violência sexual que sofri aos 14 anos. A consequência desse trauma me fez ter um olhar fantasioso sobre a vida, com dificuldade de perceber a maldade, a complexidade das pessoas e os desafios que a vida apresenta. Coisa que, na verdade, mais me deixava em perigo do que me protegia. Tentando fugir de tudo isso, pensei em estudar cinema, imaginando que, se eu criasse um universo, escolheria tudo o que aconteceria nele, o que me pareceu seguro naquele momento.
Durante o curso, precisei analisar personagens e histórias com filmes que eu não via antes, e experimentei sentimentos que me fizeram entrar em contato com tudo aquilo de que eu tanto fugia. Os exercícios de escrita de roteiros baseados em experiências próprias foram fundamentais para o processo de organização dos meus pensamentos e sentimentos. Trato de levar para as participantes dos projetos um pouco do que aprendi e que fez parte da minha busca por superação.
Seu livro, Quem é essa mulher?, fala sobre abuso sexual, mas não o faz foco da narrativa, que gira em torno do desenvolvimento de Liane. O que essa personagem simboliza?
Liane é uma Milena que já não existe mais. Mas que foi fundamental para a reconstrução de uma identidade feminina e mais humana.
Muitos definem a escrita como uma terapia, capaz de trazer tranquilidade ao se pensar sobre os problemas. Esse foi seu sentimento ao escrever Quem é essa mulher? ou outros vieram à tona?
O livro foi escrito à medida que algumas coisas iam acontecendo: o reencontro com a família e amigos da escola, a viagem pelo Nordeste, a busca pela espiritualidade, sessões de psicanálise... Sim, esse foi meu sentimento e todos os outros que estão descritos no livro. Tempestade e bonança o tempo inteiro.
O ditado "cada um carrega a própria cruz" faz sentido para você em relação ao trauma? Ou há algo mais profundo do que isso?
Eu acredito nos planos de Deus e que cada um de nós tem um propósito. Acredito também em nossa capacidade de pensar e buscar reconhecer os dons e as habilidades que temos, de olharmos para as situações desafiadoras e até traumáticas, somar tudo e fazer algo com o resultado disso. Não é possível superar nada com um único movimento; um trauma tem muitas camadas. Escrever foi um passo, conversar com a família e amigos foi outro, buscar ajuda psicológica e espiritual... Todos esses movimentos me levaram mais adiante. Mas, quando entendi que podia transformar algo que foi ruim para mim em algo bom para outras pessoas, foi extraordinário.
Em paralelo, Liane, a sua personagem, também focou nisso, tendo falado na ideia de criar novos mundos. Esses novos mundos, junto da realidade de grupos minoritários que você retratou, significam o quê?
Fui criada pela televisão dos anos oitenta, assistindo à Sessão da Tarde. Meu sonho era fazer filmes de ficção. Os que eu mais amava eram Os Goonies e Indiana Jones, todos filmes norte-americanos. Esses aí eu vi mil vezes, só renovava o aluguel na locadora de vídeo. Depois desse percurso todo, desde a escrita do livro, o contato com o público-alvo dos meus projetos e tal, fui deixando meu sonho de criança guardado. Mas não joguei fora.
Você tem um livro ou filme favorito? Alguma inspiração nesses dois setores?
O Menino do Dedo Verde, de Maurice Druon, é meu livro preferido. O autor que eu mais gosto é Edgar Allan Poe. Eu queria escrever como ele.
Algo pode ser revelado sobre um próximo lançamento, literário ou cinematográfico?
Tenho me dedicado ao longa-metragem A Estrada, que pretendo filmar este ano. Vamos ver o que acontece no cenário cultural do Maranhão.
Por fim, que mensagem você dedica às pessoas que lidam com as próprias dores?
Olhem para elas como quem busca resolver e não reviver o sentimento. Remoer machuca, adoece, aprisiona. Escrevam! Escrevendo, vocês descobrirão coisas incríveis, perdidas na memória, que os ajudarão. Busquem ajuda, conversem com seus entes queridos. Vocês são bons em escutar, em falar, em fazer rir, em ensinar? Comecem por aí, façam um movimento. O primeiro os levará ao segundo e assim por diante. Só não fiquem parados!
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Sobre o entrevistador: Enzo Santana Macedo nasceu em Teresina–PI e passou sua infância entre Bahia e Maranhão. Seus contos foram publicados em revistas digitais renomadas, incluindo Aboio e Ruído Manifesto. Para saber mais sobre suas reflexões literárias e opiniões, ele pode ser encontrado no Instagram: @enzo_santana_macedo.
Edição: Dee Mercês.
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