top of page
Foto do escritorDee Mercês

Poema-Ponte: três poemas de Nuno de Sousa

Atualizado: 8 de out.

Poema-Ponte: três poemas de Nuno Sousa

Nuno de Sousa nasceu em Lisboa nos idos de 79. Publicou sal e de corpos frementes (2019) e irei sobre o silêncio (2022). Destaca-se a Menção Honrosa no Prémio Literário Pedro da Fonseca (2022) com o conto o ciclo e o prêmio O que é ser Português da Sociedade Histórica da Independência de Portugal (2022).


***


Poema-Ponte: três poemas de Nuno de Sousa



Esse dia saí de casa para viajar


Esse dia saí de casa para viajar

saí com o que tinha à mão

a ideia dos pés na calçada

com a simplicidade com que abro os olhos


saí

para viajar

algures para lugar nenhum

decidi

sair de casa

ir viver escrever e contar a vida

saí nesse dia

viajei e não mais voltei


hoje sou um estranho

aquele calejado a quem abres a porta

alimenta com a caridade que ainda reside

o mundo roda e todos esquecem

eu esqueci

quem era

quando nesse dia saí de casa para viajar


in irei sobre o silêncio, 2022, p.50.



Talvez em ser mais ninguém


Talvez em ser mais ninguém

eu em mim seja alguém


in irei sobre o silêncio, 2022, p.57.



(Sem título)


gritaram do fundo da rua

que a ignomínia era um espelho partido

severo de arestas cortantes

aonde a cara se reflecte dual

raspada dos verbos que não afloraram aos lábios


gritaram com voz ríspida

da porta dos prédios destruídos

a pólvora e a dinamite pousando num inspirar

que não se repete não repetirá

ficou expectante de amanhã

uma nuvem negra por cima das crateras

que são sangue-violência espalhado na roupa

e a guerra entranhada nos poros


estridentemente gritaram

proferiram palavras que se viram solitárias

escorrendo no metal dos tanques e camiões

embebendo-se no cheiro do gasóleo e dos corpos

apodrecendo aos pedaços nas lagartas das máquinas

que rodam o corpo rodam o cano da arma gigante


procura outro alvo


és o alvo somos alvo

o país é um alvo

a nacionalidade é um alvo

a cor da pele é um alvo

a fé é um alvo

o nome é um alvo

a escolha do amor é um alvo

a arbitrariedade de nascer assim ou assado

é um alvo

a escolha qualquer escolha

é-um-alvo

tudo é um alvo

é um alvo


(o espelho partido quebrou-se em miríades de fragmentos

as caras deixaram de se ver)


gritaram algures

ninguém ouviu

gritaram novamente

ninguém ouviu

nem ninguém respondeu

um vento quente varreu a terra negra-queimada

uma poeira frágil arvorou dos montes ressequidos do calor


o grito calou-se


as armas calaram-se

não restavam mãos para operar

dedos para disparar

vozes para mandar

riqueza-terra-vidas para conquistar


os gritos calaram-se

todos os gritos se calaram

para sempre


restava apenas morte varrida pelo vento

passando por cima dos alvos adquiridos


todos somos um alvo


até ao momento em que unidos escolhamos

não mais procurar alvos


(Poema inédito)



***


Poema-Ponte é uma coluna quinzenal de poesia Luso-Brasileira, com curadoria a cargo do poeta português Pedro Albuquerque e edição do poeta brasileiro Dee Mercês. Nesta coluna, são apresentados poetas emergentes ou com trajetórias mais consolidadas de ambos os países.


44 visualizações2 comentários
bottom of page