Poema-Ponte: três poemas de José Manuel Barroso
- Dee Mercês
- 28 de fev.
- 2 min de leitura
José Manuel Barroso, jornalista e ex-capitão do Exército, encontra na poesia uma nova forma de expressão, explorando temas como os antepassados, a memória e a passagem do tempo.

José Manuel Barroso, 81, nasceu nas ilhas atlânticas dos Açores. Foi capitão do Exército que participou na revolução democrática de 1974. Jornalista toda a sua vida, começou a escrever poesia aos 78 anos, publicando três livros. O último: Se ficares conto-te o meu sonho seguido de Viagem tem a chancela da Edições Húmus.
Poema-Ponte: três poemas de José Manuel:
como o cipestre subo no vento
até perder a idade.
in Se ficares conto-te o meu sonho seguido de Viagem, 2024, p.43
o meu pai foi delinquente
meu avô bandido de estrada
meu primo mais ou menos isso
(para mais)
eu roubo poemas
furto ecos suaves ou fortes
aos violinos
engulo borboletas
rasgo páginas aos evangelhos
mas tenho atenuantes psíquicas
hereditárias.
in Se ficares conto-te o meu sonho seguido de Viagem, 2024, p.68
AS MÃOS DO MEU AVÔ
Eu amava as grandes mãos do meu avô
ásperas dos estragos da vida
mãos que rasgavam a terra
e carregavam pedras e fatias de pão
e apontavam às nuvens para saber se chovia
e conheciam segredos antigos
como o desenho dos seios das raparigas.
Eram suaves as suas grandes mãos
quando nos apontavam as estrelas
e desenhavam corpos de animais
a que ele chamava de constelações
que nós não víamos no céu
mas acreditávamos existirem num qualquer lugar
só porque os seus dedos os desenhavam.
As suas grandes mãos abertas tinham sulcos
rastos de muitas viagens em seu gesto
e nós escutávamos esse ruído de mar
quando ele nos contava histórias
que obedeciam às leis dos sonhos
e eram ilhas e cidades e portos
e pedaços do campo e da terra
por onde andávamos estando parados.
Um dia a minha avó morreu
e ele escondeu o rosto muitos dias
entre as suas grandes e trémulas mãos
e lágrimas sem fim brotaram-lhe dos dedos.
Depois disso ficou muito tempo silencioso
as suas grandes mãos pendentes
uma de cada lado do seu rijo corpo
e nunca mais nos desenhou constelações.
Um dia ele enganou-se e saiu
para a rua pela janela mais alta da casa
- e eu olhei aquelas grandes mãos
paradas no asfalto ao lado do corpo.
(Poema inédito)
A Poema-Ponte é uma coluna quinzenal dedicada à poesia luso-brasileira, com curadoria do poeta português Pedro Albuquerque e edição do poeta brasileiro Dee Mercês. A cada edição, a coluna apresenta poetas emergentes ou com trajetórias mais consolidadas de ambos os países, promovendo um rico intercâmbio literário entre Brasil e Portugal.